Venezuelanos indígenas acusam Operação Acolhida e Acnur de ameaçar cortar comida caso não troquem de abrigo: ‘humilhante’

Foto: Américo Matos/Rede Amazônica
Indígenas relatam que entre as intimidações, cordas e redes usadas para dormir foram cortadas pelos militares. O Acnur alegou que o processo de remanejamento foi feito de forma consultiva.

“Falaram que temos que sair obrigados, pois vão cortar luz, água e vai faltar alimento”, afirma um líder indígena venezuelano do povo Warao sobre uma decisão da Operação Acolhida e do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) de transferir os migrantes indígenas do abrigo Pintolândia, na zona Oeste de Boa Vista, para o abrigo Rondon 3.

Contrários a decisão e alegando não terem sido consultados, o líder afirma que os cerca de 292 indígenas que vivem no abrigo estão sendo forçados com intimidações, fortes ameaças e até agressões a sair do espaço contra a vontade e sem saberem o motivo da transferência.

“Desde ontem estão falando duro com a gente, dizendo que era o último dia de alimentação e todo mundo sentiu medo. Alguns choraram porquê não queriam ir. Todas as pessoas que estão aqui vivem há anos aqui, mesmo o abrigo sendo temporário. Mas, nós indígenas, queremos uma alternativa diferente, e não sermos transferidos para outro abrigo. Queremos ter nossas propriedades, ter casa e viver uma vida digna”, relatou.

De acordo com eles, militares da Acolhida chegaram a cortar as cordas das redes em que os indígenas dormiam para forçar a transferência.

Lideranças indígenas relatam maus tratos e violência psicológica no abrigo Pintolândia — Foto: Américo Martos/Rede Amazônica

Lideranças indígenas relatam maus tratos e violência psicológica no abrigo Pintolândia — Foto: Américo Martos/Rede Amazônica

 

O abrigo do Pintolândia atende exclusivamente a migrantes venezuelanos indígenas. O espaço é de responsabilidade da Operação Acolhida, ação do governo federal que atende migrantes e refugiados que entram no Brasil desde 2018.

O líder indígena conta que vários motivos levaram os indígenas a resistirem. Um deles é a distância do Rondon 3, que fica no bairro Treze de Setembro, zona Sul, para a escola em que as crianças do Pintolândia estudam. Além disso, o líder indígena disse que teme conviver com migrantes não-indígenas devido a tradicionalmente haver um histórico de violência entre os grupos.

“As crianças estudam aqui perto e nós levamos andando. Mas, para onde querem nos levar vai ser complicado. O Acnur e o Exército não garantiram um transporte. No abrigo que querem nos levar, o Rondon 3, um parente nosso Warao, Júnior Camacho, foi assassinado. Culturalmente, indígenas e não-indígenas não podem ficar juntos, pois eles estão por muito tempo maltratando a população indígena”.

Procurado, o Acnur informou que “alterações se fazem necessárias para assegurar os direitos e o bem-estar da população acolhida” e que o “remanejamento voluntário se faz necessário”. Reiterou também que tal processo foi construído de forma consultiva.

A agência alegou que diferentes opções foram e seguem sendo apresentadas por parte do Subcomitê Federal de Acolhimento, Operação Acolhida e o Acnur às pessoas abrigadas e os remanejamentos se dão por conta do “contínuo fluxo de pessoas que buscam proteção no Brasil”.

Redes e cordas cortadas no abrigo Pintolandia, em Boa Vista — Foto: Reprodução/Instagram/CIR

Redes e cordas cortadas no abrigo Pintolandia, em Boa Vista — Foto: Reprodução/Instagram/CIR

A Operação Acolhida, por sua vez, falou em “problemas irreparáveis de infraestrutura dos abrigos, em especial em questões de alojamento, água, saneamento e higiene”. E também que tais questões “impediam que fossem alcançados padrões internacionais de abrigamento emergencial”.

A Acolhida também relatou que as comunidades foram notificadas no final de 2021 e mais de 16 reuniões amplas foram realizadas com as comunidades indígenas dos abrigos. (Leia a nota completa abaixo).

Nas redes sociais, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) publicou imagens tiradas pelas lideranças Warao que mostram as redes e cordas cortadas e os pertences dos refugiados espalhados pelo local. O Conselho também publicou uma nota de repúdio e classifica as medidas da Acolhida e do Acnur como “ação truculenta”.

De acordo com o CIR, “a ação ocorreu dentro de um contexto de violações de direitos contra o Povo Warao” e informou que acompanha o caso atentamente por da assessoria jurídica.

O Conselho também afirmou ter recebido das lideranças Warao relatos de pressão psicológica por parte de entidades e do Exército para que aceitem a transferência sem dialogar com as famílias indígenas.

‘Estão nos tirando do nosso refúgio’

 

Vários indígenas demonstram nesta quinta-feira (17), em entrevista à Rede Amazônica, insatisfação, medo e constrangimento com as ameaças citadas.

A migrante Patrícia Quiñones, com a filha no colo e em tom de desespero, classificou as ações dos militares como “maus tratos” e relatou sentir receio pela família.

“Eu estou chorando, desesperada, pois estão nos tirando do nosso refúgio. Já estamos cansados que nos humilhem. Esses militares, as pessoas da Acnur que nos maltratam enquanto tem pessoas ficando nas ruas e não deixam entrar em um abrigo. E nesse abrigo os indígenas vão viver mais humilhados ainda”.

“Não queremos ir para outro abrigo, temos cinco anos aqui no Pintolândia se o governo não ajudou a gente no nosso refugio, feito para o nosso povo, não vão nos ajudar se nos colocarem junto com pessoas não-indígenas”, declarou a indígena, afirmando que a situação é “humilhante”.

Já a refugiada Célia Baz, também com um filho no colo, falou sobre não ter como levar seu filho para a escola se houver a transferência, tendo em vista que eles estudam perto do Pintolândia e vão à pé.

“Todo mundo aqui está resistindo para não ir para o Rondon 3. Nossos filhos estão estudando aqui perto, não temos transporte. Mas eles estão nos obrigando, nos ameaçando para ir para aquele lado, mas a gente não quer”.

Ela reitera que nenhum dos indígenas abrigados querem ser transferidos e que estão sendo obrigados a ir para o Rondon 3.

“Agora nós pedimos para as autoridades para que nos ajudem por favor, estamos pedido socorro. Por isso, todos estamos chorando. Todas as famílias estão chorando, ninguém quer ir”, conta.

 

Abrigo Pintolândia

 

O abrigo Pintolândia atende apenas a migrantes indígenas e é administrado pela Operação Acolhida com apoio do Acnur e outras instituições que atuam no serviço humanitário.

Em janeiro de 2020, a Acolhida disse que o abrigo eram “um local diferente”, feito para preservar a cultura dos migrantes indígenas. Além de Warao, também viviam indígenas da etnia Eñepa no espaço.

O abrigo do Pintolândia não aparece mais na lista de abrigos disponíveis na internet pela Operação Acolhida. Há somente dados do Waraotuma a Tuaoranoko, nome oficial do Rondon 3 – nele, a ocupação está em 98% (1.142 abrigados).

Indígenas refugiados saindo do abrigo Pintolandia — Foto: Américo Matos/Rede Amazônica

Indígenas refugiados saindo do abrigo Pintolandia — Foto: Américo Matos/Rede Amazônica

Em agosto de 2021, o Defensoria Pública da União (DPU) em um inspeção identificou que no abrigo havia um espaço chamado de “cantinho da vergonha”, utilizado para castigar migrantes que estivessem alcoolizados.

À época, o “cantinho da vergonha” não estava mais em funcionamento durante inspeção, conforme o defensor público federal especializado em migrações e refúgio, Rafael Liberato. Porém, ele afirma que existia e que o espaço era usado como forma de punição.

Nota completa da Acnur

 

Por meio de um memorando de entendimento assinado com o Ministério da Cidadania, o ACNUR dá apoio à gestão dos abrigos da Operação Acolhida em Roraima, em parceria com organizações da sociedade civil, trabalhando conjuntamente para a resposta humanitária no planejamento e na implementação de alterações que se fazem necessárias para assegurar os direitos e o bem-estar da população acolhida.

Sobre a realocação das pessoas indígenas, diferentes opções foram e seguem sendo apresentadas por parte do Subcomitê Federal de Acolhimento, Operação Acolhida e ACNUR às pessoas abrigadas. Em razão do contínuo fluxo de pessoas que buscam proteção no Brasil e para garantir espaços mais amplos, com a devida infraestrutura e higiene, o remanejamento voluntário se faz necessário. Tal processo foi construído de forma consultiva e atividades têm sido realizadas visando a prover informações sobre integração e meios de vida no Brasil.

Reforçamos que o ACNUR considera em todos os seus programas o caráter consultivo e voluntário, buscando atender as demandas existentes em sinergia com a melhor oferta possível, reforçando a autonomia por parte das pessoas atendidas com informação e respeito as suas escolhas.

Nota completa da Operação Acolhida

 

A partir de extenso diálogo com a população abrigada no Tancredo Neves, Nova Canaã (ambos já desativados) e Pintolândia e por meio da gestão cotidiana destes espaços, o Subcomitê Federal de Acolhimento, em articulação com o ACNUR e organizações parceiras, identificou problemas irreparáveis de infraestrutura nesses abrigos, em especial em questões de alojamento, água, saneamento e higiene. Tais questões impediam que fossem alcançados padrões internacionais de abrigamento emergencial em razão do aumento significativo da população abrigada, limitando os espaços de convivência e higiene dos abrigos. As comunidades foram notificadas no final de 2021 e mais de 16 reuniões amplas foram realizadas com as comunidades indígenas dos abrigos desativados. Com a participação da comunidade, foi pensado um novo abrigo, o Waraotuma a Tuaranoko (antigo Rondon 3), pra onde a população indígena já iniciou voluntariamente a sua transferência desde o dia 14 deste mês. A proposta foi adequar o novo abrigo para atender as necessidades da comunidade indígena – que foi e está sendo escutada por serem atores diretos na reestruturação. Além disso, todo processo está ocorrendo com a ciência dos órgãos públicos necessários, como Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União. Todo o processo de realocação tem sido gradual e voluntário, para garantir que o novo abrigo seja aprimorado e adaptado à essa população. Além disso, os indígenas que tem optado permanecer no abrigo durante esse processo, continuam sendo assistidos pela Operação Acolhida, Agência da ONU para Refugiados e outras organizações envolvidas.

O abrigo Tuaranoko possui capacidade inicial para 1.540 pessoas, quando, respectivamente, os abrigos Pintolândia, Nova Canaã e Tancredo Neves possuíam capacidade para, respectivamente, 640, 350 e 280 pessoas. Trata-se, portanto, de uma medida necessária para assegurar o bem-estar da população indígena abrigada, provendo-os melhores condições de instalações e higiene. O novo abrigo foi planejado com base em consultas e diagnósticos participativos. Ele está em região próxima de escolas, hospital público e Núcleo de Saúde da Operação Acolhida (NSA). Inclui espaços para atividades de artesanato, área comunitária “Janoko”, espaços de sombra, cozinhas tradicionais, quadras de esportes (futebol e vôlei), parque infantil, área verde para plantas medicinais e cultivos tradicionais, entre outros. O novo espaço atenderá muitas das preocupações já levantadas pela comunidade sobre questões estruturais dos atuais abrigos indígenas, cumprindo com padrões internacionais. Além disso, o novo espaço pode chegar a abrigar 2.000 pessoas, exercendo um importante papel de proteção a pessoas indígenas, uma vez que os antigos abrigos já funcionavam em capacidade máxima. Neste momento, mais de 770 pessoas já foram transferidas voluntariamente ao abrigo Waraotuma a Tuaoranoko.

Em relação a segurança,

Os abrigos são áreas protegidas e com segurança garantida pela Força Tarefa Logística Humanitária da Operação Acolhida, seja por meio de efetivos militares ou serviços terceirizados. De fato, os abrigos que foram desativados estavam localizados em áreas de risco e enfrentavam desafios de segurança urbana, conforme estudos realizados pela Operação Acolhida a partir de informações das autoridades de segurança pública. Com a reestruturação, o sistema de vigilância será otimizado e centralizado em um único espaço, aumentando a eficiência das ações de proteção, além de melhor infraestrutura sanitária, melhor estrutura para receber pessoas com deficiência, maior segurança para mulheres e crianças. É importante reiterar que todos os abrigos da Operação Acolhida possuem controle de segurança e portaria 24h, todos os dias da semana, além de contar com o apoio da Polícia do Exército em caso de necessidade. A atual falta de privacidade nos abrigos desativados pode ser apontada com um dos fatores de conflitos internos nesta população anteriormente. Ademais, estão sendo realizadas conversas com as Forças Públicas e o Município para aumentar a capacidade de monitoramento e aumentar a segurança e agilidade de resposta na área.

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